Capítulo 9: O acidente e a morte de Senna em detalhes que você nunca viu
Não vi nada de diferente na rotina do hospital quando cheguei.
Imaginava que haveria gente por todo o lado a fim de acompanhar uma
eventual cirurgia em Senna. De imediato, compreendi que eu chegara
bastante cedo ao hospital, a ponto de entrar no edifício e não ver um
único jornalista. No fim de uma rampa que dá acesso a um saguão central,
para onde todos se direcionam ao entrar no hospital, vi a primeira
manifestação de que Senna estava lá.
Um policial, um
Carabinieri, estava agitadíssimo. Alguém acabara de lhe dizer que o
piloto se acidentara e há pouco havia chegado ao hospital, transportado
de helicóptero. Ele tinha o chapéu na mão e dizia: "Meu Deus, o que é
isso, não existe mais piloto como Senna, que corre com o coração".
Eu o ouvi enquanto entrava rapidamente no saguão principal, atrás de
notícias. Estava mais tenso ainda. Mas ali não havia jeito. Se eu
falhasse, provavelmente comprometeria o restante da minha carreira
naquilo que tanto me dedicara para conseguir, ou seja, cobrir o Mundial
de Fórmula 1 para a grande mídia brasileira. Cada vez que me lembrava
disso ganhava força para deixar de lado minhas emoções.
Parei de
pensar também nas reações que estavam ocorrendo no Brasil por conta do
acidente de Senna, o que colaborou para eu me controlar.
Nesse
momento, vi Roberto Cabrini, repórter da TV Globo, com quem sempre tive
boa relação profissional, e, um pouco mais tarde, Celso Itiberê, o
correspondente do jornal o Globo em Milão.
No Brasil, era
domingo de manhã. Lembro-me de ter ligado para os jornais em que
trabalhava, Estadão e Jornal da Tarde, além da Agência Estado, a fim de
informar ao chefe de reportagem, Castilho de Andrade, que havia deixado o
autódromo e me encontrava no hospital.
Eu pensei comigo: se
Senna morresse, todas as atenções estariam lá na Itália, ao menos até o
embarque do corpo para o Brasil. Eu estava sozinho, seria o responsável
por levar aos leitores dos jornais da empresa um painel de informações
de tudo. Era uma grande responsabilidade.
Isso fez eu me
concentrar quase doentiamente no meu trabalho. Ao mesmo tempo, comecei a
elaborar uma estratégia de cobertura. As notícias estariam no hospital,
mas também no autódromo. Era imprescindível ouvir Frank Williams, dono
da equipe de Senna, Patrick Head e Adrian Newey, os homens que assinaram
o projeto do modelo FW16 pilotado por Senna.
Médicos realmente profissionais
Não encontrei no hospital um único cidadão que tivesse um mínimo de
sensibilidade com o que estava se passando: um piloto de F1, ídolo em
dezenas de países, mesmo na Itália, lutava para viver e os funcionários
do hospital continuavam sendo mal-educados, grossos e desinteressados,
mesmo com quem falasse em italiano com eles, como eu.
O que
faltava de bom senso a essas pessoas sobrava nos médicos deslocados para
o atendimento. Todos solícitos e não escondendo nenhuma informação.
Fomos orientados a não subir ao 11° andar, mas era impossível atender o
pedido do hospital. A notícia estava lá.
E eu não errei ao
decidir pagar para ver. Logo que sai do elevador, encontrei um médico
com roupas usadas no centro cirúrgico. "O senhor veio lá de dentro, viu o
Senna, pode me dizer alguma coisa?", perguntei, meio afobado,
primariamente, imaginando ouvir um desaforo.
Para a minha
surpresa, nada disso ocorreu. Descobri tratar-se do doutor Servadei, um
dos que atendeu Senna ainda na pista e o acompanhou, no helicóptero, até
o hospital. Apesar de profissional, ele estava abalado. Com voz baixa,
começou a descrever o que vivera naquela última hora.
Choque ao tirar o capacete
Ele é quem fala: "Antes mesmo de retirar o capacete, ficamos
impressionados com a quantidade de sangue que o piloto perdia. Alguma
artéria havia sido atingida com certeza e minha primeira preocupação
era, uma vez exposta a cabeça de Senna, tentar conter a hemorragia. Quem
orientou a complexa retirada do capacete foi o doutor Sid Watkins, o
médico da FIA. Mas tão logo tivemos acesso a sua cabeça, sem o capacete e
a balaclava, compreendi que Senna não sobreviveria", disse-me o doutor
Servadei.
"Vimos que a base craniana estava aberta e ele perdia
massa cefálica, cérebro, pelo corte de mais de um centímetro de largura
que corria por trás das orelhas, de lado a lado da cabeça. Para mim, ele
havia batido a cabeça no muro da curva Tamburello, em alta velocidade.
Isso explicava aquele traumatismo generalizado da caixa craniana".
Depois de ouvir aquilo, estava claro para mim que não havia mais o que
fazer. A morte de Senna era uma questão de tempo. Pouco tempo. Lembro-me
de ter procurado um lugar para sentar e dizer a mim mesmo que aquilo
era verdade. Eu estava em choque.
Nesse instante, passou um
cidadão que, educadamente, me informou que os médicos do caso falariam
no centro de conferências do hospital, no térreo. Profundamente abatido,
sem saber o que pensar, fui para lá, sempre transportando o meu bloco
de anotações e o velho computador laptop Toshiba 1000, uma peça de museu
se comparada aos que uso hoje.
Atrás da mesa do centro de
conferência ficaram, de pé, o doutor Domenico Cosco, a doutora Maria
Tereza Fiandri, o doutor Andreolli, neurocirurgião, o doutor Servadei e o
doutor Gordini, anestesista.
Não há nada que possamos fazer
O primeiro a falar foi Andreolli, que descreveu o quadro como o mais
traumático possível. "Não existe uma área específica do crânio que
podemos atuar para a reparação, tudo foi danificado no acidente. O
traumatismo é generalizado, bem como os danos a todo o tecido nervoso",
explicou.
Entre a minha conversa com o doutor Servadei, no 11°
andar, e o início da conferência houve um intervalo de uma hora. Já
haviam muitos repórteres no hospital para acompanhar o caso. Na sala de
conferência, pude observar até mesmo doentes de pijama, internados, que
sabiam da internação de Senna em estado de emergência. Desejavam mais
notícias.
A consternação pelo anunciado pelo doutor Andreolli
foi impressionante. As pessoas tomaram consciência de que Senna, ídolo
de tanta gente, aquele que parecia imortal, morreria no máximo em
questão de horas. Entrei em contato com o nosso chefe de reportagem para
informar o que já apurara e o que viria pela frente.
Como eu
teria de escrever um volume respeitável de textos naquele dia, Castilho
sugeriu que eu já enviasse o primeiro com o que tinha até então. Achei
prudente. Sentei numa das cadeiras da sala de conferência e conectei meu
laptop em uma tomada que descobrira ali, próximo da mesa dos médicos,
que já haviam deixado o local.
Comportamento irracional
Nesta hora, apareceu um cidadão, daqueles imbecis que há pouco citei,
dizendo que não poderia ficar lá. "Vou fechar esta sala", disse, com a
maior agressividade pensável. Eu lhe pedi que me desse uns 50 minutos
para redigir um texto. Isso em nada alteraria a rotina do hospital.
Outros jornalistas também manifestaram a necessidade de trabalhar.
Quase sem olhar para nós o indivíduo foi até o painel de controle de
luzes da sala e nos ameaçou, com a mão nas chaves elétricas: se não
saíssemos de lá naquele instante desligaria a luz do ambiente. Fechei
meu laptop e fui embora.
Fui procurar o doutor Servadei
novamente, o do helicóptero, que tão gentil se mostrara. Por sorte, o
encontrei numa sala do térreo. Ele me deu mais detalhes: "A hemorragia
que Senna tinha ainda na pista era tão violenta que durante o voo nós
lhe demos litros de sangue". Ele também falou da perda de líquor,
líquido cefalorraquidiano existente entre as camadas nervosas, a fim de
protegê-las.
"Em decorrência da desaceleração sofrida pelo
cérebro, Senna perdia massa cinzenta e líquor, o que começou a deformar
rapidamente suas feições".
Toda vez que essas camadas são
rompidas, o líquor, mantido sob elevada pressão entre elas, se espalha
pelas cavidades que encontra, causando o inchaço de todos os tecidos. Em
outras palavras, a cabeça de Senna estava se deformando rapidamente,
ganhando volume.
Vida vegetativa
O
doutor Gordini, o anestesista, próximo ao doutor Servadei, contou-me
também outra passagem durante o voo de helicóptero até o Hospital
Maggiore: "Senna teve uma depressão respiratória importante. Nós
administramos drogas que reverteram o quadro. Mesmo que ele não tivesse
sofrido todos os estragos no cérebro, decorrentes do impacto no muro, só
aquela depressão já lhe teria causado danos irreversíveis no tecido
nervoso. Ele teria apenas vida vegetativa. Seu cérebro recebeu pouco
oxigênio durante um tempo precioso. No CTI, Senna chegou a ter uma
parada respiratória. De novo, nós o reanimamos".
Observe que em
nenhum momento os médicos falaram em afundamento do frontal, causado por
algum componente do carro que se projetou na direção da cabeça no
momento do impacto. Hoje, acredita-se que a barra que conecta a manga de
eixo da suspensão dianteira direita ao conjunto mola-amortecedor,
denominada push-rod, se soltou no choque do Williams no muro e se
deslocou na direção do capacete de Senna.
A seguir a barra
perfurou a viseira e pressionou a cabeça do piloto contra a parte de
trás do cockpit. Essa compressão é que teria causado a fratura da base
do crânio, descrita pelo doutor Servadei. A barra atingiu antes a
artéria temporal, gerando a forte hemorragia.
Recapitulando:
pouco antes das 16 horas eu já estava no Hospital Maggiore e conversava
com o doutor Servadei, na porta do CTI. Às 16h30 a doutora Fiandri
anunciou, no centro de conferências do hospital, que o neurocirurgião,
doutor Andreoli, falaria sobre o estado de Senna. Ficamos sabendo que
não havia como intervir cirurgicamente e que a morte era uma questão de
horas.
Depois, voltei a falar com os médicos presentes no
autódromo e eles me deram mais informações do atendimento. A doutora
Fiandri, que se tornou uma espécie de porta-voz do grupo médico, nos
avisou que só se pronunciaria se tivesse "alguma novidade".
Às
17h55, ela surge novamente no saguão principal do hospital, na porta do
pronto-socorro. A esta altura, o hospital não mais permitia o acesso ao
11° andar, onde estava Senna, no CTI.
Morte cerebral
A doutora Fiandri estava visivelmente emocionada. Uma multidão de
repórteres se aproximou para ouvi-la. Não se manifestou até que o
silêncio foi feito. Eu estava ao seu lado. Com a voz embargada, a médica
afirmou: "Senhores, o eletroencefalograma de Senna não acusa mais
atividade elétrica". Deu uma pausa. Parecia estar se recompondo. "Senna
tem morte cerebral". Saiu em completo silêncio, devagar.
Os
profissionais de imprensa que permaneceram no autódromo, a esta altura,
com o fim da corrida, já estavam no hospital. Para a maioria, aquele foi
o primeiro contato com os médicos que cuidavam de Senna. A notícia
causou comoção em todos. Quem estava lá já sabia que o desfecho do caso
seria aquele.
Uma disputa intensa pelos telefones públicos
seguiu. A telefonia celular de longa distância estava apenas começando.
Não me lembro de ver alguém com celular na época.
O comunicado
da doutra Fiandre informava, no fundo, a morte de Senna. Seu coração
continuava batendo, mas não por muito tempo. Vi pessoas chorando, entre
eles jornalistas muito emocionados também. Eu ainda não chorara, talvez
por conta daquele preparo a que me submeti, dizendo a mim mesmo que, ao
menos enquanto estivesse ali, atrás de informações, mantivesse a
situação sob controle. Mas estava abalado, sem dúvida.
Todos
nós, jornalistas, precisávamos nos comunicar com nossas bases, para, de
novo, informar o andamento das notícias. A doutora Fiandri, por exemplo,
disse que só voltaria a falar com a imprensa às 21 horas ou se "tivesse
alguma novidade". Isso depois de anunciar a morte cerebral do piloto,
às 18h05.
A verdade crua e dura
Às
19h05, ela surgiu de novo, proveniente do pronto-socorro. Não era onde
estava o piloto. Com os olhos marejados, claramente havia chorado, falou
em voz pausada, carregada de emoção, enquanto não se ouvia um ruído
sequer a sua volta, apesar da presença de centenas de jornalistas. Todos
precisavam ouvir para acreditar.
"Senhores, por favor...(tempo
para respirar fundo). Desde as 18h40, Senna não registra mais atividade
cardíaca", afirmou. Nova pausa. Ninguém se manifesta, silêncio absoluto.
A doutora Fiandri sugere ter algo mais a dizer e todos se mantêm ao seu
redor. Com os olhos cheios de lágrimas, afirma delicadamente:
"Senhores, Senna está morto".
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